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Banking is Open, mas nem tanto: portas da acessibilidade digital seguem fechadas a PcDs na maioria das "techs" brasileiras

Dario Palhares

Um em cada cinco brasileiros não tem grandes motivos para comemorar esta Semana do Consumidor (13 a 19 de março). São cerca de 46,5 milhões de pessoas com deficiências (PcDs) visuais, auditivas, físicas e intelectuais – o equivalente à população da Espanha –, que enfrentam enormes dificuldades para realizar consultas, compras e transações financeiras online. Isso, claro, quando conseguem.

De acordo com pesquisa realizada pelo Movimento Web para Todos (WPT), em abril de 2021, somente 0,89% dos 16,89 milhões de sites ativos no país atendiam a todos os requisitos de acessibilidade (em formulários, imagens e links, além de conformidade com o padrão HTML do World Wide Web Consortium).

O mesmo levantamento revelou um quadro menos dramático no conjunto dos 2.369 aplicativos Android mais utilizados no mercado local (com mais de 10 milhões de downloads cada): 14,64% contavam, no primeiro semestre do último ano, com descrições de imagens – essenciais para usuários cegos e com baixa visão. Em compensação, apenas 8,92% e 0,52% dispunham do recurso em botões e campos editáveis.

“Há informações e ferramentas de sobra para tornar sites e aplicativos mais acessíveis. Falta, contudo, conhecimento aos profissionais que lidam com canais digitais sobre os desejos e o poder de consumo das pessoas com deficiências”, comenta Suzeli Damaceno, coordenadora do WPT.

Web Para Todos

Por si só, os indicadores econômicos das PcDs já justificariam uma maior atenção ao assunto por parte das empresas. Afinal, o mercado doméstico de produtos e serviços para esse púbico fatura cerca de R$ 5,5 bilhões a cada temporada e, segundo pesquisa elaborada pela Locomotiva Pesquisa e Estratégia, somente os brasileiros com deficiências auditivas detêm uma renda anual de R$ 576,60 bilhões.

Suzeli Damaceno, coordenadora do WPT

De quebra, como observa a coordenadora do WPT, sites mais acessíveis alcançam melhores ranqueamentos no Google e costumam, também, carregar mais rapidamente. “Descrições de imagens, por exemplo, facilitam a ‘leitura’ do site pelos robôs da ferramenta de busca, que valorizam essa característica nas indicações aos internautas”, diz Suzeli.

Outro ponto que merece ser observado pelo mundo corporativo em relação ao tema é a exigência da acessibilidade em sites para pessoas com deficiência, estabelecida pelo artigo 63 da Lei 13.146, o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Vigente há seis anos, o texto deve ganhar, em breve, duas novas regulamentações, ambas relativas ao artigo 63, propostas pelos projetos de lei 1.090/21 e 4.238/21.

De autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), o primeiro apresenta uma lista de 11 recursos de acessibilidade que deverão estar à disposição das PcD nos sites: símbolo de acessibilidade em destaque, navegação por teclado, avatar ou intérprete da Língua Brasileira de Sinais (Libras), descrição das imagens e possibilidade de redimensionamento da página sem perda de funcionalidade etc.

Já o PL 4.238/21, apresentado pelo deputado federal Felipe Rigoni (União-ES), que perdeu a visão aos 15 anos, prevê, entre outras medidas, multas e até suspensões para companhias e órgãos do governo que ignorarem o artigo 63 da Lei 13.146.

“A Lei Geral de Proteção de Dados também garante aos cidadãos informações claras, precisas e facilmente acessíveis sobre o tratamento de seus dados”, observa Suzeli. “Se, por hipótese, um deficiente visual encontrar dificuldades para se inteirar desse processo, poderá recorrer à Justiça.”

Só 35 instituições oferecem acessibilidade no PIX

Na seara do PIX, um número ainda reduzido de instituições oferecem opções de acessibilidade aos usuários do sistema, apesar das cobranças do Banco Central (BC) nesse sentido. Até o momento, o BC contabiliza 35 soluções do gênero, das quais duas de autoria do grupo Itaú Unibanco, uma das referências nacionais na área.

João Paulo Surian, Itaú

A geração de know-how no relacionamento com PcDs teve início em 2015, quando a área de Tecnologia da Informação (TI) do banco, então comandada pelo engenheiro João Bezerra Leite, deu os primeiros passos para a implantação de sua política de qualidade, que previa, como é de praxe, a realização de testes de produtos e sistemas voltados aos clientes da instituição. A acessibilidade digital entrou de vez na pauta do departamento graças ao analista João Paulo Surian, cego desde os 14 anos, que em uma reunião interna perguntou a seus superiores se os testes seriam estendidos a pessoas com deficiência.

“A proposta foi aceita”, lembra Surian. “Encarregado de criar testes de acessibilidade, me debrucei sobre as Diretrizes de Acessibilidade para o Conteúdo da Web [WCAG, no acrônimo em inglês] e defini uma metodologia de trabalho calcada em duplas formadas por profissionais com e sem deficiência. Esse arranjo propiciou ótimas soluções, como o ligeiro escurecimento da cor laranja, utilizado em fundos de texto no site do banco, que facilitou leituras por pessoas com baixa visão.”

A prática ganhou escala no Itaú Unibanco, que conta atualmente com cerca de 50 profissionais voltados aos testes de acessibilidade e ainda recorre a serviços de terceiros, casos de NTT Data e Yaman, para dar conta do recado. Outro grande reconhecimento desse esforço foi a decisão, tomada pela casa, de que todo projeto digital deve contemplar o público com deficiência desde a estaca zero. Não por acaso, portanto, a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) apresentou um convite especial ao banco para participar de um grupo de trabalho na área.

“A ABNT está empenhada em definir normas e parâmetros para a construção de sites acessíveis, tomando como referência o nosso padrão”, diz o coordenador de acessibilidade digital Hildebrando Júnior, que destaca, ainda, o aval de um gigante digital às iniciativas tocadas por seu departamento. “Há algum tempo, uma equipe do Google nos visitou e ficou muito bem impressionada com o que viu. Desde então, trocamos informações sobre acessibilidade.”

“Clique aqui, clique ali”

Os avanços alcançados pelo Itaú Unibanco e outras instituições financeiras no quesito facilitaram a vida de uma legião de clientes com deficiência. A montagem adequada dos sistemas permite, por exemplo, que os leitores de telas utilizados por muitos PcDs interpretem corretamente todas as informações contidas no site. Até há alguns anos, como observa Júnior, os deficientes visuais não conseguiam nem mesmo digitar as senhas de suas contas por conta própria.

“Como a programação embutida nos botões dos algarismos não era apropriada, os leitores de telas se limitavam a repetir sem parar: ‘clique aqui’, ‘clique aqui’…”, diz ele. “Já atualmente, pessoas cegas ou com baixa visão conseguem fazer tudo em nossos sites sem a necessidade de qualquer ajuda: de tirar selfies a preencher cadastros, passando por operações financiamento e investimento. Recebemos poucas queixas e reclamações sobre acessibilidade.”

Principal responsável por esse projeto de inclusão digital, Bezerra, que deixou o banco há três anos, se tornou, segundo sua própria definição, um “evangelizador” da acessibilidade. Hoje, ele atua como embaixador do WPT e prega em defesa das PcDs na Bossanova Ventures, na qual coordena o pool de fintechs investidas pela casa, e em uma série de startups das quais é conselheiro, casos de Surf, DrumWave, Culqi, Inmetrics, PegaSystems, Crediz, b89 e Transfeera.

Depois do Itaú, virou “evangelizador”

“Quando você abraça exceções, abraça a todos”, diz ele. “Legendas, por exemplo, facilitam a compreensão de vídeos por deficientes auditivos e, também, por grandes grupos de pessoas sem problemas de audição reunidas num mesmo ambiente. O mesmo vale para calçadas adaptadas para cadeirantes, que facilitam o trânsito de carrinhos de bebê e de pedestres em geral.”

Na mesma linha de Suzeli Damaceno, do WPT, Bezerra credita os baixos índices de acessibilidade em sites e aplicativos ao desconhecimento das empresas sobre as oportunidades de negócios com PcDs. Em sua avaliação, no entanto, o quadro tende a mudar, pois os passes de analistas e programadores especializados no assunto estão em alta no mercado.

“Outro sinal de mudança é o surgimento de prestadoras de serviços digitais com tecnologias que agregam acessibilidade a canais digitais já existentes”, diz Bezerra. “Elas são indicadas para empresas de menor porte, que não têm recursos suficientes para montar equipes próprias de experts.”

Duas representantes dessa nova classe de fornecedores são a Equal Web Brasil e a Hand Talk. Braço local da startup israelense homônima criada há oito anos, a primeira conta com uma ferramenta que oferece 31 recursos de acessibilidade para sites – como navegação por teclado, lupa, regulagens de contrastes, descrições de imagens, comandos de voz e leitores de texto – o  com intervenções mínimas.

Equal Web Brasil e Hand Talk

“O processo é muito simples: aplicamos uma linha de Java Script no domínio que o cliente quer tornar acessível. Depois disso, bastam alguns pequenos ajustes para otimizar o acesso”, explica o head de impacto Jacques Haber, que atua em parceria com a mulher, Andrea Schwartz, cadeirante desde 1998, em diversas frentes do mundo da acessibilidade.

Com menos de dois anos de atividades, a Equal Web Brasil, que conta com uma filial em Montevidéu, já estabeleceu contato com cerca de 400 empresas. Desse grupo, 70 se tornaram clientes da firma, que mantém negociações no momento com outras cem companhias, em sua maioria de grande porte. A

estratégia de prospecção será reforçada, em breve, com a criação de um instituto em parceria com a Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH), que pretende tornar o seu congresso anual mais acessível. “O objetivo dessa estratégia é identificar empresas que investem em acessibilidade digital”, diz Haber, que também pretende realizar novas investidas no exterior. “Depois do Uruguai, planejamos iniciar operações em Portugal.”

Jacques Haber, head de Impacto da Equal Web Brasil

Já a Hand Talk é 100% voltada a pessoas com deficiência auditiva. O negócio estreou com o pé direito, vencendo a versão 2012 do Demoday de Alagoas, e desenvolveu musculatura rapidamente. O primeiro peso-pesado a requisitar os serviços de tradução em Libras oferecidos pela casa foi o Magazine Luiza, em 2014, que depois ganhou a companhia de Shoptime, Americanas, Bradesco, Itaú, Samsung e Azul, entre outros.

Com o caixa bem abastecido, em 2018, a fintech assumiu o controle de sua principal concorrente, a ProDeaf, e ainda recebeu uma injeção da ordem de R$ 2,5 milhões da Kviv Ventures e da Bossa Nova Investimentos.

“Nossa carteira conta atualmente com 800 clientes, o dobro do total registrado há dois anos. O salto foi resultado, entre outros fatores, do forte crescimento do comércio virtual durante a pandemia da Covid 19”, comenta o CEO Ronaldo Tenório, que projeta a assinatura de um volume considerável de novos contratos em 2022. “A meta é fechar o ano com mais de mil clientes.”

Criativa e ousada, a estratégia de negócios da startup teve como ponto de partida o lançamento, há nove anos, de um produto gratuito, o Hand Talk App, um tradutor de texto e voz para a Libras. O sucesso do aplicativo, que contabiliza mais de 5 milhões de downloads e 2 bilhões de palavras traduzidas, acabou despertando o interesse de várias companhias para um público consumidor até então praticamente ignorado – os 10 milhões de brasileiros com deficiência auditiva, que detêm uma renda 83,63% superior ao PIB do Uruguai.

“O passo seguinte foi a apresentação, em 2014, do Hand Talk Plugin, que é comercializado para empresas. Trata-se de um botão que, acoplado aos sites, traduz automaticamente textos em português para a Libras”, diz Tenório.

Língua de sinais americana

Ronaldo Tenório, CEO da Hand Talk

Instalada há alguns meses no Centro de Inovação do Polo Tecnológico (CIPT) de Maceió, a Hand Talk segue a traçar planos de expansão. No último ano, ela anunciou o desenvolvimento de uma tecnologia inédita, o Hand Talk Motion, capaz de traduzir movimentos em linfuagens de sinais para línguas faladas e escritas. Criada com o apoio de parceiros internacionais, caso do Google, a novidade deverá ser incorporada em breve ao cardápio da casa.

“O Hand Talk Motion tem por base modelos de inteligência artificial desenvolvidos por nossa equipe”, explica Tenório. “Ele garantirá às pessoas com deficiência auditiva o poder de se comunicar, de se fazer entender.”

Outro trunfo da casa é a opção do Hand Talk App para a língua de sinais americana, a ASL, lançada em 2020. Voltada a um público estimado de 250 mil a meio milhão de estado-unidenses e canadenses com deficiência auditiva, o produto já responde por 30% dos downloads do aplicativo – demanda que motivou a Hand Talk a iniciar o desembarque na América do Norte.

“Já temos alguns funcionários nos Estados Unidos trabalhando de forma remota”, informa Tenório, que passou algum tempo no Vale do Silício, em 2019, durante um processo de aceleração da sua empresa. “Até 2023, pretendemos consolidar nossa atuação no mercado norte-americano.”

PS: o portal Fintechs Brasil solicitou, sem sucesso, entrevistas sobre acessibilidade digital de pessoas com deficiência (PcDs) a oito fintechs (BS2, C6, Cactvs, Listo, Neon, Nubank, PicPay e Will Bank) entre 18 e 23 de março.

Quando o assunto é diversidade, fintechs fogem pela tangente – dentro e fora de casa

Calcado em palavras de ordem como disrupção, inovação e inclusão, o discurso das empresas nascentes de viés tecnológico cai por terra no quesito diversidade – especialmente em relação a pessoas com deficiência (PCDs).

A edição 2021 do Mapeamento do Ecossistema Brasileiro de Startups, elaborado pela principal entidade do segmento, a Abstartups, revelou que, em um universo de 2.486 negócios do gênero, 90,3% não tinham uma única PCD em seus quadros de pessoal e outras 6% destinavam a esse público, no máximo, 5% dos postos de trabalho.

O descaso também se estende, no caso das startups financeiras, até mesmo a consumidores e usuários: só cinco fintechs desenvolveram sistemas de acessibilidade completos ao PIX, ou seja, voltados para pessoas com deficiências visual, auditiva e física, segundo dados do Banco Central.

“São poucas as fintechs que oferecem opções de acessibilidade digital para pessoas com deficiência e nenhuma delas, a rigor, serve como referência no assunto. A maioria se preocupa com cegos, pessoas com baixa visão e cadeirantes, mas se esquece, por exemplo, dos daltônicos, que necessitam de maior contraste entre as letras e o fundo das telas para ler textos”, comenta o analista de qualidade em acessibilidade Gabriel Vicalvi, de 36 anos, que nasceu cego.

Militante da causa, o rapaz participou da campanha Imagens que Falam, lançada pelo Movimento Web para Todos (WPT) em maio de 2020, empunhando um cartaz com os dizeres “Sem descrição nas imagens não consigo cuidar das minhas próprias finanças”.

A iniciativa reflete a prioridade do público com deficiência visual na estratégia de ação do WPT, que, entretanto, segue a desenvolver expertise em outros segmentos do universo de PCDs. “O uso de pop-ups, por exemplo, demanda cuidado, pois pode causar fortes reações em pessoas com bipolaridade ou transtorno de déficit de atenção com hiperatividade”, observa a coordenadora Suzeli Damaceno.

Há seis anos lidando com conceitos de acessibilidade em sistemas digitais, Vicalvi aponta o caminho das pedras para marinheiros de primeira viagem. Empresas que decidem colocar sites e aplicativos ao alcance de PCDs devem, recomenda ele, contemplar o propósito desde o marco zero dos projetos e buscar atender, de início, os níveis menos complexos das Diretrizes de Acessibilidade para o Conteúdo da Web [WCAG, no acrônimo em inglês].

“Outro ponto importante é identificar e dar prioridade nos ajustes de sistemas já em operação aos fluxos mais utilizados”, diz Vicalvi. “Quem quer executar todo o trabalho de uma vez não consegue fazer nada.” (DP)